Caso do Vestido
Carlos Drummond de Andrade
Nossa mãe, o que é aquele
vestido, naquele prego?
Minhas filhas, é o vestido
de uma dona que passou.
de uma dona que passou.
Passou quando, nossa mãe?
Era nossa conhecida?
Era nossa conhecida?
Minhas filhas, boca presa.
Vosso pai evém chegando.
Vosso pai evém chegando.
Nossa mãe, dizei depressa
que vestido é esse vestido.
que vestido é esse vestido.
Minhas filhas, mas o corpo
ficou frio e não o veste.
ficou frio e não o veste.
O vestido, nesse prego,
está morto, sossegado.
está morto, sossegado.
Nossa mãe, esse vestido
tanta renda, esse segredo!
tanta renda, esse segredo!
Minhas filhas, escutai
palavras de minha boca.
palavras de minha boca.
Era uma dona de longe,
vosso pai enamorou-se.
vosso pai enamorou-se.
E ficou tão transtornado,
se perdeu tanto de nós,
se perdeu tanto de nós,
se afastou de toda vida,
se fechou, se devorou,
se fechou, se devorou,
chorou no prato de carne,
bebeu, brigou, me bateu,
bebeu, brigou, me bateu,
me deixou com vosso berço,
foi para a dona de longe,
foi para a dona de longe,
mas a dona não ligou.
Em vão o pai implorou.
Em vão o pai implorou.
Dava apólice, fazenda,
dava carro, dava ouro,
dava carro, dava ouro,
beberia seu sobejo,
lamberia seu sapato.
lamberia seu sapato.
Mas a dona nem ligou.
Então vosso pai, irado,
Então vosso pai, irado,
me pediu que lhe pedisse,
a essa dona tão perversa,
a essa dona tão perversa,
que tivesse paciência
e fosse dormir com ele...
e fosse dormir com ele...
Nossa mãe, por que chorais?
Nosso lenço vos cedemos.
Nosso lenço vos cedemos.
Minhas filhas, vosso pai
chega ao pátio. Disfarcemos.
chega ao pátio. Disfarcemos.
Nossa mãe, não escutamos
pisar de pé no degrau.
pisar de pé no degrau.
Minhas filhas, procurei
aquela mulher do demo.
aquela mulher do demo.
E lhe roguei que aplacasse
de meu marido a vontade.
de meu marido a vontade.
Eu não amo teu marido,
me falou ela se rindo.
me falou ela se rindo.
Mas posso ficar com ele
se a senhora fizer gosto,
se a senhora fizer gosto,
só pra lhe satisfazer,
não por mim, não quero homem.
não por mim, não quero homem.
Olhei para vosso pai,
os olhos dele pediam.
os olhos dele pediam.
Olhei para a dona ruim,
os olhos dela gozavam.
os olhos dela gozavam.
O seu vestido de renda,
de colo mui devassado,
de colo mui devassado,
mais mostrava que escondia
as partes da pecadora.
as partes da pecadora.
Eu fiz meu pelo-sinal,
me curvei... disse que sim.
me curvei... disse que sim.
Sai pensando na morte,
mas a morte não chegava.
mas a morte não chegava.
Andei pelas cinco ruas,
passei ponte, passei rio,
passei ponte, passei rio,
visitei vossos parentes,
não comia, não falava,
não comia, não falava,
tive uma febre terçã,
mas a morte não chegava.
mas a morte não chegava.
Fiquei fora de perigo,
fiquei de cabeça branca,
fiquei de cabeça branca,
perdi meus dentes, meus olhos,
costurei, lavei, fiz doce,
costurei, lavei, fiz doce,
minhas mãos se escalavraram,
meus anéis se dispersaram,
meus anéis se dispersaram,
minha corrente de ouro
pagou conta de farmácia.
pagou conta de farmácia.
Vosso pais sumiu no mundo.
O mundo é grande e pequeno.
O mundo é grande e pequeno.
Um dia a dona soberba
me aparece já sem nada,
me aparece já sem nada,
pobre, desfeita, mofina,
com sua trouxa na mão.
com sua trouxa na mão.
Dona, me disse baixinho,
não te dou vosso marido,
não te dou vosso marido,
que não sei onde ele anda.
Mas te dou este vestido,
Mas te dou este vestido,
última peça de luxo
que guardei como lembrança
que guardei como lembrança
daquele dia de cobra,
da maior humilhação.
da maior humilhação.
Eu não tinha amor por ele,
ao depois amor pegou.
ao depois amor pegou.
Mas então ele enjoado
confessou que só gostava
confessou que só gostava
de mim como eu era dantes.
Me joguei a suas plantas,
Me joguei a suas plantas,
fiz toda sorte de dengo,
no chão rocei minha cara,
no chão rocei minha cara,
me puxei pelos cabelos,
me lancei na correnteza,
me lancei na correnteza,
me cortei de canivete,
me atirei no sumidouro,
me atirei no sumidouro,
bebi fel e gasolina,
rezei duzentas novenas,
rezei duzentas novenas,
dona, de nada valeu:
vosso marido sumiu.
vosso marido sumiu.
Aqui trago minha roupa
que recorda meu malfeito
que recorda meu malfeito
de ofender dona casada
pisando no seu orgulho.
pisando no seu orgulho.
Recebei esse vestido
e me dai vosso perdão.
e me dai vosso perdão.
Olhei para a cara dela,
quede os olhos cintilantes?
quede os olhos cintilantes?
quede graça de sorriso,
quede colo de camélia?
quede colo de camélia?
quede aquela cinturinha
delgada como jeitosa?
delgada como jeitosa?
quede pezinhos calçados
com sandálias de cetim?
com sandálias de cetim?
Olhei muito para ela,
boca não disse palavra.
boca não disse palavra.
Peguei o vestido, pus
nesse prego da parede.
nesse prego da parede.
Ela se foi de mansinho
e já na ponta da estrada
e já na ponta da estrada
vosso pai aparecia.
Olhou pra mim em silêncio,
Olhou pra mim em silêncio,
mal reparou no vestido
e disse apenas: — Mulher,
e disse apenas: — Mulher,
põe mais um prato na mesa.
Eu fiz, ele se assentou,
Eu fiz, ele se assentou,
comeu, limpou o suor,
era sempre o mesmo homem,
era sempre o mesmo homem,
comia meio de lado
e nem estava mais velho.
e nem estava mais velho.
O barulho da comida
na boca, me acalentava,
na boca, me acalentava,
me dava uma grande paz,
um sentimento esquisito
um sentimento esquisito
de que tudo foi um sonho,
vestido não há... nem nada.
vestido não há... nem nada.
Minhas filhas, eis que ouço
vosso pai subindo a escada.
vosso pai subindo a escada.
Texto extraído do livro "Nova Reunião - 19 Livros de Poesia", José Olympio Editora - 1985, pág. 157.
Releitura do poema "Caso do Vestido" de autoria de Manuella Spindola
Meu erro
(baseada no poema "Caso do vestido" de Carlos Drummond)
O casamento pra mim estava se tornando
uma prisão, por mais que eu a amasse
ela não completava meu coração.
Sentindo-me vazio caminhando embrenhado
na solidão, deparei-me com uma mulher que
seduziu meu coração.
Era uma mulher bonita, corpulenta e altiva
que com o tempo completou o vão que sobrara
em minha vida.
Vivemos intensamente aquela paixão,
porém o tempo, angustia de quem ama,
fez-me perceber que paixões repentinas nem sempre
provém do coração.
Cansado da moça, cuja beleza um dia me atraíra,
parti, pois esta já não me satisfazia.
Ah! Como me enganara, pois não era o casamento meu algoz,
mas meu impulso inimigo atroz.
Autora: Manuella Sant'ana Juttel de Souza (802/2013)
Ouça a narração do poema pelo próprio Drummond.
Video com narração de Drummond
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